EXÉRCITO DO SURF (DE TREM)



Ontem morreu mais um garoto que brincava em cima de um trem nos arredores de Curitiba - leia aqui. Para quem quiser entender melhor essa nova onda (sem trocadilhos) de surf ferroviário, reproduzo abaixo uma matéria que escrevi sobre o assunto em agosto do ano passado.

No início da década de 90, imagens de jovens se arriscando sobre os trens urbanos da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, correram o mundo. Era o fenômeno do surf ferroviário, que logo se espalhou por outras cidades brasileiras e ganhou destaque na rede de tevê CNN, responsável por uma série de reportagens sobre o tema. Quase vinte anos depois, essa prática perigosa e ilegal está mais viva do que nunca, agora nas composições de carga.

Não à toa, a ALL (América Latina Logística), maior empresa do segmento com base ferroviária, acaba de lançar uma campanha de conscientização para coibir o surf ferroviário. A ação, que prossegue até dezembro, contempla as cidades de Curitiba (e Região Metropolitana), Santos, Sorocaba, Araraquara e Bauru, consideradas de maior incidência.

No Paraná, a companhia registrou seis acidentes com morte desde 2006. Quatro deles ocorreram apenas em dezembro do ano passado, o que indica um aumento no número de praticantes. A última vítima foi Anselmo Rodrigues dos Santos, de 22 anos. No dia 19 de julho, ele teve o corpo partido ao meio depois de cair de um trem no município de Piraquara, a cerca de 20 quilômetros da capital.

Segundo a polícia local, Anselmo estava acompanhado de outros dois rapazes, que fugiram depois do incidente. A família, no entanto, acredita que ele foi assassinado. Uma história complexa, que inclui brigas entre irmãos e acusações de abuso infantil. ''Uma irmã nossa, que nunca gostou do Anselminho, andou dizendo por aí que ele estuprou a filha dela. Os homens da vila se revoltaram e jogaram ele no trilho do trem'', resume Lindemir, outra de suas irmãs.

Seja como for, ela admite que Anselmo tinha o hábito de ''brincar'' nos vagões da ALL. ''A gente sempre aconselhava ele a não fazer isso. Por causa do perigo e porque os seguranças da empresa podiam pegá-lo'', diz a moradora da Vila Macedo, em Piraquara.

Anselmo, um adulto, destoa, em parte, do perfil do ''surfista'' apresentado pelo departamento de segurança da companhia: crianças e adolescentes carentes de regiões cortadas por linhas férreas. E basta uma rápida pesquisa na internet para perceber que a prática também é adotada por jovens de classe média. Só na rede social Orkut, há mais de 20 comunidades sobre o tema cadastradas. Sem contar os vídeos postados no YouTube com registros de ''aventuras'.

Procurada pela reportagem, Carolina Goulart, coordenadora dos programas de segurança da ALL, afirma que conhecia as comunidades virtuais dos surfistas - mas não imaginava que eles também se exibem no portal de vídeos. Ela explica que as ações de conscientização são desenvolvidas dentros das comunidades, por meio de palestras e da distribuição de materais educativos. ''Os garotos sobem nos trens pela adrenalina, porque não têm outras opções de lazer'', diz.

Carolina ainda conta que, no interior de São Paulo, a ALL presenteou crianças com bolas, e isso diminuiu a incidência da prática. Mas como chamar a atenção dos jovens mais abastados, que têm acesso à internet e câmeras de vídeo? Segundo a coordenadora, o mapeamento das áreas de risco feito pela companhia não apontou surfistas com o perfil identificado pela reportagem - e, portanto, ainda não há qualquer tipo de ação voltada para esse público.

''É QUASE SUICIDA!''

''Surf é arte, cair faz parte'', diz o lema de uma das várias comunidades do Orkut dedicadas aos surfistas ferroviários. Outro termo comum é ''rabeira'' (ou ''rabêra''), usado por quem apenas pega carona nos engates dos trens - uma versão um pouco menos radical do surf propriamente dito.

Nos dois casos, a motivação é a aventura, a adrenalina envolvida na prática. ''O barato é curtir o vento na cara e o cheiro da natureza'', diz um internauta do grupo de discussão ''Pego Rabêra de Trem''. Outro afirma que ''é mais massa quando o trem está em movimento''. E arremata, empolgado: ''É quase suicida!''.

Muitos dos praticantes são montanhistas que percorrem a serra do mar pendurados nas composições. Um deles confessa que uma de suas viagens ''quase deu em m..., mas foi melhor do que ir a pé''. Há, ainda, quem se gabe de pular de um vagão para o outro. ''É muito louco, e tinha uma galera junto'', conta um rapaz.

Mas nada melhor do que os vídeos do YouTube para comprovar que o surf de trem é mesmo uma mania. Alguns chegam a ser embalados por trilhas sonoras de rock e hip-hop, a exemplo dos clipes de esportes radicais. Outros são ainda mais alarmantes, como o que mostra os praticantes segurando ''tubões'' (garrafas pet com refrigerante e cachaça) enquanto se divertem. Ou o assustador registro de um grupo de meninos portando pistolas (verdadeiras ou não) no alto de um vagão.

Na era da internet, não basta se aventurar e correr perigo - é preciso mostrar para quem quiser ver.

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