CAMALÕES MUSICAIS


Resgate de uma reportagem sobre bandas de baile que fiz para a FdL. As fotos são do Theo Marques.

A realidade musical do Brasil, definitivamente, não está nos cadernos culturais. Também passa longe da televisão, que deixou de fabricar seus ídolos para cortejar um ou outro fenômeno já estourado nos rincões do país. Nesse cenário periférico e fragmentado, um formato tradicional sobrevive justamente por sintetizar toda essa movimentação: o das bandas de baile.

Radicalmente ecléticos, os conjuntos do gênero atualizam seu repertório mutante o tempo todo, de acordo com o gosto do público. Estar antenado com as novidades, portanto, é sua garantia de longevidade. Ondas musicais vêm e vão - e até os DJs hoje são encarados como artistas. Mas nada parece abalar a força das bandas, que seguem rodando pelas estradas a bordo de seus ônibus coloridos.

Às oito da manhã de uma quinta-feira, um deles estaciona em frente à Sociedade Água Verde, em Curitiba. Traz os integrantes do grupo Almas Iguais, atração do baile marcado para o início da noite. Vindos de Paranavaí, os 15 passageiros (10 músicos e 5 técnicos) estão "no bagaço", como define um deles.

Foram quase nove horas de viagem, a primeira de uma maratona de 11 dias na estrada. Por isso, ninguém se faz de rogado e todos ajudam a descarregar o equipamento. Inclusive os "donos" do conjunto, os irmãos Brito, juntos nos palcos há 25 anos.

Uirá e Antônio, os mais velhos, hoje cuidam apenas da logística dos shows. Ubirá canta, Barrinha toca baixo e outros dois sobrinhos completam o núcleo central. Mesmo surpresos com a abordagem inesperada da reportagem, eles abrem o jogo sobre a atual situação do Almas Iguais, anteriormente conhecido como Corpo e Alma.

Em 2006, um grupo homônimo do Rio Grande do Sul conseguiu provar na Justiça que tinha os direitos sobre o nome há mais tempo. Os Brito foram obrigados a rebatizar a banda, mas a perda da marca foi péssima para os negócios. "Tivemos que recomeçar praticamente do zero", conta Uriá.

Segundo ele, o conjunto chegou a viajar com três ônibus e um caminhão na época das vacas gordas. Agora, com a estrutura reduzida ao mínimo necessário, não consegue sequer manter bailarinas fixas. Para o show daquela noite, duas moças curitibanas "terceirizadas" dançariam por R$ 100.

No geral, uma banda de baile consolidada no mercado faz entre 10 e 12 apresentações por mês. Os cachês variam de R$ 1.500 a R$ 15 mil, dependendo do tipo de evento e do tamanho da estrutura exigida. Quando os "showmícios" ainda eram permitidos pelo Tribunal Superior Eleitoral, os artistas fechavam pacotes de 40 dias seguidos para acompanhar os candidatos.

"A proibição prejudicou muito os músicos. Hoje, a melhor época do ano é o Carnaval. No resto do ano, a gente toca em 'baileco' para sobreviver", diz Uriá.

PINGA NO BAMBU

A montagem do palco vai durar até o fim da manhã. E o que fazer até o início do show, previsto para às 19 horas? "Como não estamos em hotel, ficamos 'coçando' dentro do ônibus", admite Ubirá, o homem de frente do grupo.

O cantor também aproveita o tempo livre para compor. Sim, porque o Almas Iguais não toca apenas covers. Já são quatro CDs gravados, sendo que o quinto está na boca do forno. No último trabalho, o carro-chefe foi a faixa "Uísque e Redbull (Pinga no Bambu)", que pegava carona na mais recente onda etílica da música popular, puxada pelo megahit "Cair, Beber e Levantar".

Mas a tendência já mudou de novo, ele conta. O que pega agora são letras sobre marmanjos que esnobam as garotas, bem ao gosto dos fãs do movimento conhecido como "sertanejo universitário". Vide sucessos como "Chora, Me Liga" (João Bosco e Vinícius), "Paga Pau" (Fernando e Sorocaba) e "Deixa a Mala Pronta" (Hugo Pena e Gabriel) - todos na contramão da dor de corno típica da música caipira.

De olho na moda, Ubirá revela que escreveu uma música "mais moderna" para o novo CD do Almas Iguais. E recita um trecho de "Tô de Boa", que narra a história de um sujeito às voltas com uma ex-namorada louca para reatar o relacionamento. "Tô de boa, tô de boa / Me cuidei, hoje tô bem / Agora numa boa, preciso de um tempo também", diz o refrão.

"Vou batalhar até conseguir um sucesso", confessa o músico, antes de se despedir da reportagem. Naquela noite, porém, o público não teria a oportunidade de ouvir sua candidata a hit nacional. "Hoje o baile é para um pessoal mais velho. Só vai tocar Frank Sinatra, Pepino Di Capri, Manolo Otero", diz, resignado com o gosto da freguesia.


JAIR, O SOBREVIVENTE

Brasil 2000, Metrópole, Santa Mônica, Edição Especial, Almas Iguais, New York, Fonte Luminosa... Enquanto você lê este texto, incontáveis conjuntos paranaenses estão viajando pelas estradas do país - indo ou voltando de shows. Nenhum deles, no entanto, tem mais milhas rodadas do que o Jair Supercap, talvez a banda de baile mais antiga do estado ainda em atividade.

Formado em 1974 pelos irmãos Barreto, de Jacarezinho, o grupo ficou notório pelo carisma de Jair, um showman nato, intuitivo. Quem assistia ao antigo programa do Bolinha, na TV Bandeirantes, na década de 80, deve se lembrar dele. Maquiado e fantasiado, o artista popular divertia o público com suas imitações de Ney Matogrosso, Maria Bethânia, Simone, etc.

Por essas e outras, a reportagem não pensou duas vezes quando descobriu que o Supercap estava escalado para animar uma "domingueira" na Sociedade Água Verde. Entrou em contato com o clube e negociou a cobertura do baile. "Negociou" porque a secretaria impôs uma condição: não fotografar os frequentadores. "É que tem muita gente casada que vem aqui sozinha e não quer ser identificada", explicou uma funcionária.

Corta para o fim de tarde daquele domingo. Nos dois salões do clube, um público, digamos, maduro, dança ao som de sucessos sertanejos e gauchescos. São mulheres e, principalmente, homens entre 45 e 65 anos, envolvidos num clima de paquera quase adolescente. Enquanto Jair e sua trupe não aparecem, um DJ e um grupo de vanerão promovem o arrasta-pé.

Odilon, um dos irmãos fundadores do Supercap, apresenta-se para a reportagem. Chegou antes porque é o técnico da banda, mas conta que já foi baixista. Trocou de lado por conta de uma certa desilusão com o meio. "Ninguém se importa mais com a música. O som ter quem ser alto, só isso", lamenta.

Seja como for, sua mulher e o filho de 20 anos continuam no palco. Ela é uma das vocalistas do grupo, enquanto o rapaz seguiu o pai no contrabaixo. Ao todo, 12 membros da família Barreto fazem parte do Supercap, entre músicos, técnicos e produtores. "É o Jair que mantém todo mundo unido. Se ele tivesse a minha cabeça, já teria parado", confessa Odilon.


OPÇÃO PELA FAMÍLIA

O band leader, enfim, chega ao clube. Passa rápido pelo corredor e o seguimos até o camarim. É um espaço pequeno e precário, com apenas um espelho e marcas de infiltração pelas paredes. Enquanto a garotada do balé se prepara, Jair, o sobrevivente, conversa com a reportagem.

"Quando aparecia no Bolinha, recebi vários convites para largar a banda. Mas optei pela família", diz, sobre a longevidade do Supercap. Aos 57 anos, ele se mantém antenadíssimo com as paradas de sucesso. A prova é uma caixa de papelão que carrega para todo lugar, cheia de fichas com nomes de músicas novas. Até o som emo de Fresno e NX Zero tem lugar no repertório.

Sem citar nomes, Jair comenta as tendências do momento. "Os artistas de hoje duram muito pouco. O pessoal consome música como se fosse bolacha", critica. Os grandes talentos da atualidade, para ele, são Marisa Monte e Ana Carolina. "Gosto de poesia e melodia, coisas que esses grupos que só sabem tocar três acordes não têm", explica.

Quanto aos negócios, o artista (que também é dono de uma rádio em Cambará) não tem do que reclamar. Mesmo com a proibição dos showmícios. "Isso foi bom para quem realmente tem qualidade. Limpou o mercado das porcarias", afirma.

Atualmente, o Supercap faz em média 14 shows por mês, com cachês entre R$ 4 mil e R$ 15 mil. O ponto alto do ano na agenda é a Festa do Peão de Barretos (SP), da qual a banda é uma das atrações mais tradicionais. "Dessa vez, vamos fechar para o Roberto Carlos", orgulha-se.

E por falar no Rei, é hora de começar a apresentação, que vai contar com uma sequência inteira de canções do maior ídolo popular do país. Depois de uma abertura "épica", com direito a efeitos especiais e música techno, Jair sobe ao palco usando um paletó azul, em referência ao homenageado da noite. Ao som de "Detalhes", os casais se grudam no centro da pista.

Na mesma hora, a quilômetros dali, o verdadeiro Roberto faz o grande show comemorativo de seus 50 anos de carreira, no Rio de Janeiro. Está feita uma improvável conexão Maracanã-Água Verde.

SHOW DE TECNOLOGIA

Nos últimos anos, alguns conjuntos de baile também passaram a ser chamados de "bandas show", por conta do aparato que envolve suas apresentações. A começar pelas dançarinas, que tomam conta do palco com seus figurinos e coreografias extravagantes. Mas o que enche mesmo os olhos - e ouvidos - do público são as novidades tecnológicas.

Uma aparelhagem que se preze deve incluir um sistema de luz e som de ponta, além de telões de alta definição (vários, se for possível). São toneladas de equipamentos, carregadas para lá e para cá de acordo com a exigência do contratante. "Para o show de hoje, só trouxemos 20% do que temos", conta Odilon, técnico do Supercap, diante de uma infinidade de traquitanas. Imagina a estrutura inteira...

Guitarrista e gerente da banda Fonte Luminosa, de Atalaia, Jeferson Fontinhas diz que os avanços tecnológicos obrigam os grupos a trocar de equipamentos anualmente. Recentemente, o conjunto comprou novos canhões de luz e trocou todos os telões convencionais por aparelhos de plasma. "O contratante e o público observam muito se a estrutura está atualizada", afirma.

As tecnologias de comunicação são igualmente importantes. Principalmente a internet, que se tornou o principal cartão de visitas dos grupos. Todos têm site, comunidade no Orkut, canal no YouTube, etc. "A internet é tudo hoje. É um vício para o jovem, e o adulto que não entrar nessa vai ficar por fora", diz Jair.

Jeferson vê outra utilidade na web. Para ele, a rede é uma forma de ficar "plugado" nos hits do momento. "Antes de fazer um show em Brasília, por exemplo, a gente entra nos sites das rádios de lá para saber o que anda tocando, as músicas mais pedidas", explica.

3 comentários:

  1. Muito bom! Deixando à parte a discussão do "kitsch, brega ou cafona", o texto resultou realista e respeitoso (com os músicos de baile e com os leitores), sem qualquer traço do preconceito que muitas vezes marca reportagens dessa natureza! (Sabe, né?).

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  2. show de bola omar, muito bom esse textão aí!
    é exatamente esse tipo de texto que motiva tanto a ler quanto a escrever sobre música!

    parabéns!

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  3. Marcelo tem razão, preconceito tive eu ao ler que Marisa Monte e Ana Carolina são consideradas os grandes talentos da atualidade. é que não gosto muito de nenhuma delas :(

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